Enquanto alguém monta o guarda-sol, em algum ponto dessa mesma praia tem um guarda-vidas contando cabeças — e procurando a próxima corrente de retorno.
Afogamento não costuma virar manchete. Ele não tem “cena” bonita, não tem trilha sonora, e quase nunca dá aviso. E mesmo assim, a estimativa é brutal: cerca de 15 pessoas morrem afogadas por dia no Brasil, algo como “um brasileiro a cada 90 minutos”. BVS MS
A pergunta que incomoda é simples: se a gente já sabe como evitar boa parte dessas mortes… por que elas continuam acontecendo?
O afogamento que ninguém vê
O cinema ensinou errado: nos filmes, a vítima grita, debate, levanta o braço e pede ajuda. Na vida real, o afogamento costuma ser silencioso. A pessoa fica na vertical, com a cabeça mal fora d’água, braços abrindo e fechando como se tentasse se apoiar no nada. Em segundos, some.
Isso acontece porque o corpo entra em modo de sobrevivência: prioriza respirar, perde coordenação, engole água, tosse, aspira líquido e entra em hipóxia (falta de oxigênio). Quando a hipóxia vence, vem a queda de força, alteração de consciência e, no pior cenário, parada cardiorrespiratória.
Pra organizar o caos do atendimento, uma classificação muito usada no Brasil é a escala de gravidade do afogamento (graus), que ajuda a decidir quem pode ser observado, quem precisa de hospital imediato e quem precisa de reanimação agora. ResearchGate
Grau 0–1: resgate com poucos sintomas (susto, tosse leve).
Grau 2–3: falta de ar importante, sinais pulmonares, piora progressiva.
Grau 4–6: insuficiência respiratória grave, parada, óbito.
Essa escala não é “manualite”: ela determina tempo, rota e prioridade.
O tamanho do problema
No mundo, os números variam conforme a forma de estimar e o que entra na conta. A OMS (WHO) trabalha com uma estimativa de ~236 mil mortes por afogamento/ano e destaca o peso em crianças e adolescentes. Organização Mundial da Saúde+1
Já o Relatório Global de Prevenção de Afogamentos da OMS indica que, em 2021, houve mais de 300 mil fatalidades, embora com queda importante desde 2000. Organização Mundial da Saúde
No Brasil, a SOBRASA e materiais técnicos associados apontam um cenário de massa: além dos óbitos, há milhões de exposições ao risco, com estimativas como 1,3 milhão de salvamentos aquáticos/ano, 260 mil hospitalizações e centenas de desaparecidos. sobrasa.org+1
Em outras palavras: a morte é a ponta do iceberg. O resto é trauma, internação, sequela e família despedaçada.
Onde a água puxa: corrente de retorno, rios e armadilhas “calmas”
Corrente de retorno (o “corredor que puxa”)
A corrente de retorno é um canal estreito de água voltando para o fundo, levando banhistas para longe da praia. Ela costuma parecer “mais calma” justamente por ter menos onda quebrando. Identificar é treino: observe faixa mais lisa/escura, menos espuma e um “buraco” no desenho das ondas. royallifesaving.com.au+2oceanservice.noaa.gov+2
Se você cair numa corrente de retorno: a regra é contraintuitiva — não lute para voltar reto. Nade paralelo à praia até sair do canal; depois, retorne em diagonal com ajuda das ondas. oceanservice.noaa.gov+1
Rios, represas e lagoas (o perigo que parece conhecido)
Boa parte das mortes acontece longe da praia turística: água doce, “lugar de sempre”, final de semana, confiança alta. Só que o fundo muda, surgem buracos, galhadas prendem, a corrente corre por baixo da superfície lisa. É o tipo de lugar onde a frase “eu conheço aqui desde criança” vira armadilha.
Piscinas (o risco escondido no ambiente “controlado”)
Piscina vende sensação de segurança. Só que criança submerge em segundos quando o olhar do adulto desvia. E existe ainda o risco técnico: sucção/ aprisionamento em ralos mal projetados ou sem proteção adequada — um motivo de existir norma e regra. A ABNT NBR 10339 é frequentemente citada em discussões técnicas de segurança de piscinas, inclusive sobre dispositivos/ralos e requisitos de projeto.
Linha de frente: guarda-vidas e Bombeiros (e a “cadeia de sobrevivência”)
Do lado de fora, o guarda-vidas parece “só olhando”. Do lado de cá, existe leitura de mar, vento, buraco, comportamento de banhista, posicionamento de bandeiras e prevenção ativa o tempo inteiro.
Uma forma clara de entender o trabalho é pela Drowning Chain of Survival (Cadeia de Sobrevivência do Afogamento): prevenção → reconhecimento precoce → flutuação (dar algo que boie) → retirada segura → suporte de vida e cuidado avançado. ISAF
O ponto crítico: o leigo não deve virar resgatista no impulso. A ação que salva mais vidas é simples e fria:
acione socorro (193/192),
jogue algo que flutue,
mantenha contato visual e sinalize,
evite entrar na água sem técnica/equipamento.
Existe um capítulo trágico pouco falado: o “herói que não volta”. Uma fatia das mortes envolve tentativas de resgate por pessoas sem preparo — coragem demais, técnica de menos.
Quando a água encontra a burocracia: estatística, responsabilidade e “vácuo de fiscalização”
Tem um jeito do problema ficar ainda mais invisível: registro ruim. Um estudo sobre mortalidade por “causas externas de intenção indeterminada” (2012–2021) mostra que uma parcela relevante das mortes por causas externas cai nessa categoria — e isso pode “esconder” acidentes que deixam de ser qualificados corretamente. SciELO Brasil+1
E, depois da tragédia, vem a pergunta espinhosa: de quem é a responsabilidade? Em geral, em locais privados (clubes/condomínios com acesso e serviço), o dever de segurança costuma ser interpretado de forma mais forte. O STJ, por exemplo, já tratou de caso em que clube foi responsabilizado por falhas preventivas em estrutura aquática envolvendo criança. Superior Tribunal de Justiça+1
No Brasil, também existe um mosaico de leis estaduais/locais sobre guarda-vidas e segurança em piscinas. Na Bahia, há lei exigindo salva-vidas/guardião em certos contextos de uso coletivo. Leis Estaduais E no plano federal, o Congresso já discutiu normas gerais de segurança para funcionamento de piscinas, reforçando a ideia de responsabilidade compartilhada e dever de cuidado. Portal da Câmara dos Deputados
O resultado é um país onde, no papel, há regra; na prática, a fiscalização oscila. E quando fiscalização falha, “atalhos” aparecem: formação frágil, certificações ruins, falta de padrão. Um alerta útil vem de fora: uma investigação do Washington Post descreveu problemas de supervisão em certificações de guarda-vidas nos EUA após um afogamento fatal, mostrando como brechas de treinamento viram risco real. The Washington Post+1
Prevenção que funciona (sem romantizar)
Praia: nade onde há guarda-vidas; respeite bandeiras; evite álcool antes do mar; se estiver puxando, saia paralelo. royallifesaving.com.au+1
Rios/represas: desconfie do “calmo”; evite entrar sozinho; cuidado com buracos/galhadas; colete salva-vidas em atividades de risco é investimento, não exagero.
Piscinas: supervisão ativa de crianças (sem “turno de olhar”); barreiras físicas; ralos/proteções adequados; regra clara de uso.
O verão brasileiro não precisa ser uma roleta russa de água. A água não tem intenção. Quem decide o desfecho é a soma de microdecisões: ignorar a bandeira, economizar no guarda-vidas, relaxar no portão da piscina, “só um mergulho rápido” no rio.
Conhecer o afogamento é o primeiro passo para não virar estatística. O segundo é compartilhar essa informação.



