Introdução
No sertão nordestino, não é a viatura nem o drone que decide a operação — é o calor, a falta de água e o tipo de vegetação. Caçar uma quadrilha de “novo cangaço” em região de caatinga não é a mesma coisa que patrulhar bairro urbano. O terreno é agressivo, o apoio demora, o rádio às vezes não fecha e cada erro custa energia e hidratação. É nesse vazio operacional que nasceram as chamadas “polícias de caatinga”: unidades estaduais especializadas em patrulhar longas distâncias, rastrear foragidos e manter presença onde o crime acredita que ninguém vai atrás.
Esse modelo não saiu de uma sala com ar-condicionado. Ele foi herdado das antigas Volantes que, no começo do século XX, perseguiam Lampião e outros grupos cangaceiros no mesmo bioma. A diferença é que hoje há fuzis 5,56, viaturas 4×4, GPS e integração com inteligência. Mas a lógica é a mesma: conhecer o sertão melhor que o criminoso.
Das Volantes ao BEPI: o passado que virou procedimento

Para entender por que Pernambuco, Bahia, Ceará, Sergipe, Paraíba, Rio Grande do Norte, Piauí e Maranhão criaram unidades específicas para o semiárido, é preciso voltar às operações contra o cangaço. As Volantes eram grupos móveis, leves, que viviam em deslocamento e sabiam ler pegadas, rastros de fogueira, uso de aguadas e trilhas de gado. Esse legado está muito bem documentado nas obras do pesquisador Frederico Pernambucano de Mello, como Estrelas de Couro e Guerreiros do Sol, que ajudam a entender a gramática do combate no sertão (ver em: https://www.fundaj.gov.br).
A emboscada de Angicos, em 1938, que resultou na morte de Lampião e parte do seu bando, cristalizou o método: informação + rastreio + escolha correta do terreno. Décadas depois, as polícias estaduais perceberam que essa mesma lógica servia para enfrentar bandos armados modernos, quadrilhas que explodem bancos e criminosos que usam o sertão como rota de fuga.
Por isso não é exagero quando a própria PM da Bahia chama a CIPE Caatinga de “volantes dos tempos modernos”. Esse histórico pode ser visto nos canais oficiais: https://www.pm.ba.gov.br. Em Pernambuco, a antiga CIOSAC (1997) — depois transformada em BEPI em 2015 — seguiu o mesmo caminho: criar uma escola de caatinga para formar policiais capazes de ficar dias em missão em ambiente quente e seco.
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Quem são as polícias de caatinga hoje?

Quando abrimos o mapa do Nordeste, vemos que quase todo estado que tem áreas de caatinga estruturou uma tropa para isso:
Pernambuco – BEPI (ex-CIOSAC): referência em patrulhas longas e enfrentamento de quadrilhas no interior. Mais detalhes em notícias da SDS: https://www.sds.pe.gov.br
Bahia – CIPE Caatinga e CIPE Semiárido: nascidas do CPAC (2001) e depois redesenhadas. Atuam em dezenas de municípios, com foco em mobilidade e presença prolongada. Site institucional: https://www.pm.ba.gov.br
Ceará – BEPI/COTAR e COD: modelo híbrido que protege interior e fronteira, estruturado por lei estadual (Lei nº 15.217/2012). Informações gerais: https://www.pm.ce.gov.br
Alagoas – COPES: patrulha no eixo do São Francisco e apoio tático para o interior. https://www.pm.al.gov.br
Sergipe – atual Batalhão de Polícia de Caatinga (BPCaatinga), evoluído do antigo CIOPAC, com missão específica para o Alto Sertão. https://www.pm.se.gov.br
Paraíba – GEOsAC, dentro do COpEsp, com foco em doutrina de operações em caatinga. https://www.pm.pb.gov.br
Rio Grande do Norte – GTOs interiorizados, que atuam com perfil de sertão e resposta rápida. https://www.pm.rn.gov.br
Piauí – BEPI e Batalhão Rural, com cursos como o COPAR para ambiente rural. https://www.pm.pi.gov.br
Maranhão – COSAR, que combina selva e caatinga por causa da transição de biomas. https://www.pm.ma.gov.br
Um detalhe importante: essa doutrina não é exclusividade das PMs. O Exército Brasileiro também mantém o Centro de Instrução de Operações na Caatinga (CIOpC), ligado ao 72º BIMtz, em Petrolina-PE. Lá são oferecidos estágios básico e avançado, que inclusive recebem policiais estaduais e federais. Você encontra mais sobre isso no site do Exército: https://www.eb.mil.br
Ou seja: a caatinga deixou de ser apenas cenário e virou escola.
Por que esse ambiente exige doutrina própria?
A caatinga ocupa cerca de 11% do território brasileiro e cobre praticamente todo o miolo do Nordeste. O IBGE descreve o bioma como semiárido, com pouca disponibilidade hídrica e vegetação espinhosa: https://www.ibge.gov.br/geociencias. A operação policial nesse ambiente tem alguns problemas muito objetivos:
Calor e insolação – a superfície pode chegar a 60 ºC; isso exige janela térmica e planejamento de água.
Terreno hostil – galhos, pedras, formigueiros, abelhas e vespas; o policial precisa de perneira, manga longa, proteção UV.
Distância do apoio – diferente da cidade, não existe apoio a 5 minutos. O grupo precisa ser autossuficiente.
Navegação por referências naturais – muitas áreas não têm endereços; a patrulha usa leito de rio seco, serrotes, tanques de fazenda e marcações anteriores.
Criminalidade itinerante – o “novo cangaço” usa o sertão como rota de fuga porque sabe que o policiamento ordinário não tem alcance.
Por isso os cursos de caatinga incluem sobrevivência, administração de água, tiro sob estresse térmico, rastreio e contra-rastreio, marcha diurna e noturna e até preparo de alimento em condição de escassez. Há relatos de instruções similares em doutrinas militares de caatinga que podem ser vistas em artigos e reportagens especializadas, como este panorama: https://www.defesanet.com.br
Armamento e equipamentos: a gramática é a mesma, o sotaque muda




Quando se observa o que essas unidades carregam, aparece um padrão claro: plataformas 5,56 mm no estilo AR (AR-15, M4, IA2, RF-15) como arma principal, justamente porque são leves, têm boa cadência, aceitam acessórios e funcionam bem em terreno aberto. Em algumas unidades, como a CIPE Caatinga, aparecem armamentos mais modernos como o IWI ARAD (informações do fabricante em https://iwi.net). Em outras, como Sergipe, o Fuzil T10 e o IA2 dividem espaço conforme a missão.
A variação acontece por três motivos: orçamento do estado, missão específica e disponibilidade de lotes. Mas a lógica é a mesma: arma leve, que permita deslocamento prolongado e possibilidade de engajar alvo a média distância. Isso é muito diferente do policial urbano que passa o dia de colete numa viatura e tem apoio rápido.
A ameaça que mantém tudo isso vivo: o “novo cangaço”
Toda essa doutrina se justifica porque o interior nordestino passou a registrar ações de quadrilhas fortemente armadas que atacam agências bancárias e carros-fortes. A literatura policial tem chamado isso de “domínio de cidades”: o grupo chega de madrugada, corta comunicação, espalha terror e foge por mata ou por estradas de difícil acesso. Para entender esse fenômeno em escala nacional, vale acompanhar o monitoramento da Polícia Federal e de centros de estudo de segurança como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública: https://forumseguranca.org.br
Se o crime foge pela caatinga, a polícia precisa saber perseguir pela caatinga. Simples assim.
Conclusão: bioma virou método
O que começou como improviso de Volante virou hoje curso, unidade, bandeira e manual. BEPI, CIPEs, COTAR, COPES, GEOsAC, BPCaatinga e outras estruturas provaram que o sertão não é um “lugar sem polícia”, mas um lugar que precisa de polícia certa. A caatinga passou de obstáculo a vantagem operacional: quem sabe operar ali chega primeiro, fica mais tempo e sai com segurança.
Para quem produz conteúdo, estuda concurso da área de segurança ou atua em forças públicas, esse tema ainda é pouco explorado — e riquíssimo. Há base histórica, há base tática e há atualidade criminal. E quase ninguém mostra isso com profundidade.
Se você quiser se aprofundar, comece pelos canais oficiais das PMs citadas, pelos livros de Frederico Pernambucano de Mello e pelos documentos do Exército sobre operações em caatinga. Depois, conecte isso ao fenômeno do novo cangaço. Vai enxergar o mesmo fio condutor: o terreno manda. Sempre mandou. E quem lê o terreno, comanda a operação.



